domingo, 8 de julho de 2012

Solar dos Zagallos - A arte e a técnica dos jardins

Como complemento de habitabilidade, os jardins situam-se ao lado e nas traseiras da casa, estendendo-se num declive suave, com alguns degraus e sucessivos terraços.
Nota comum a tantos outros jardins, acolhendo características específicas da área rural e da região sul, aqui existe uma construção à medida das necessidades desta sociedade fechada e tradicionalista, com a criação de variados espaços: de cheiros e prazeres no jardim do aparato, o pomar, a estufa, a horta, o pinhal, alamedas de passeios ladeadas por bancos (também situados em lugares de realce, de eixo de caminhos, e na entrada do jardim, lateral ao portão principal do Solar), os tanques, os espaços íntimos (pátios), para além de algumas estruturas arquitectónicas como a Casa de Fresco, ou da Água, e as duas capelas, a do Senhor dos Passos e a de Santo António do Caiado (Ver texto de 1 de Julho).
O Jardim do Aparato do Solar dos Zagallos, situado nas traseiras do edifício
Casa de Fresco ou da Água
Com fins lúdicos e ornamentais assistimos à mesma diversidade azulejar nos jardins, já presenciada na habitação. Enquanto componente essencial da arquitectura portuguesa, o azulejo extravasa do espaço habitado interiormente para o ambiente exterior, em revestimento de patamares de escadarias, e alonga-se, penetrando nos jardins, onde cobre bancos e muros, refresca de azulejo padronizado a Casa da Água, veste de belos painéis as paredes das capelas.
A complementaridade entre as artes decorativas e a natureza cria recantos de lazer e de sociabilidade, representativos da forma de ser e estar dos habitantes da casa, ao longo de três séculos de uso.
A faceta de decoração artística do azulejo ultrapassa, no entanto, o mero ornamento e a funcionalidade para se transfigurar em componente importante no desvendar do corpus social da vivência do espaço.
Um percurso através do espaço ajardinado, situado ao lado e nas traseiras do espaço edificado, transporta o visitante para um mundo complementar de recantos, os pátios.
No mais harmonioso, o Pátio da Estufa, encontramos dois bancos de estrutura arquitectónica singela, mas harmoniosa, apresentando cada um revestimento azulejar em azul sobre branco, no centro do espaldar, emoldurado pelo enquadramento das pilastras e cimalha de rígido formalismo. Envolvendo os episódios historiados, o painel apresenta guarnição de ondas e concheados de azul denso, abrindo as pinceladas em tons esbatidos nos marmoreados.
Um dos quadros visualiza o "jogo da cabra-cega", o outro o "jogo das cartas". Através das pinceladas que se vão esbatendo e de jogos de linhas concorrentes, percebe-se um perspectiva tridimensional, que transfigura a inicial frieza estática em imagens de realismo dinâmico e cenográfico.
Pátio da Estufa - "jogo da cabra-cega"
Pátio da Estufa - "jogo das cartas (este painel tem sofrido sucessivos vandalismos e investidas de roubo; aos ataques sucedem-se os "arranjos estéticos" possíveis
No Pátio do Chá encontramos painéis de diversas épocas, desde o século XVIII até ao passado século, anos quarenta, de que é exemplo a foto seguinte, um painel modernista, com azulejos de figura avulsa de estampilhagem, pintados de forma algo ingénua, apresentando, entre outros motivos estilizados (sol, lua, flores), figuras tradicionais portuguesas e animais dos nossos "Impérios" das quatro partidas do mundo, denotando a influência das correntes ideárias do Estado Novo.
Pátio do Chá
Os restantes painéis são composições de azulejos polícromos de figura avulsa,  imaginativos e esteticamente muito apelativos, com flores ou com pássaros e flores, apresentando ornatos acessórios aos cantos, entremeados por azulejos de faixa, podendo ser datados do século XVIII.
Pátio do Chá
Pátio do Chá
A padronagem de motivos abstractos, em padrão repetido, está presente no muro do jardim e no revestimento da Casa de Fresco e como friso do nicho da parede (ver a segunda foto deste texto). Penso que posso igualmente apontar o século XVIII para a sua produção.
Muro do jardim, junto à Casa de Fresco
O padrão que reveste o banco central de um dos caminhos do jardim situado na zona lateral do Solar é de uma época posterior a estes referidos ultimamente. Os tons são esbatidos e os padrões parecem ser de cariz muito simplificado, marcado por motivo central florido e limites adornados em forma de cercadura. Não obstante essa singeleza e despojamento, o conjunto da aplicação, no centro do espaldar do banco e igualmente na sua base, resulta numa estética adequada ao eixo do jardim onde está situado.
Banco situado no jardim lateral do Solar, numa encruzilhada de caminhos
Pormenor do painel de revestimento do referido banco
O azulejo serve de diálogo entre o passado e o presente e aqui reside o seu poder, que não deve ser encarado como mero elemento decorativo, despojado da capacidade de transmissão de informação.
Reconstituindo a cultura da sociedade que o encomendou, transportou até aos nossos dias imagens da vida social setecentista e de oitocentos, com ligações de actualização de gostos e de modas até ao século XX. As suas capacidades expositivas contêm um poder extraordinário de captar momentos e sentimentos ou simples visões do mundo de outras épocas.
Cena figurativa do painel de azulejos que valoriza um dos bancos do Pátio da Estufa - "jogo da cabra-cega"
Nos bancos apresentando cenas de vida social e cortês, os jogos tradicionais, como o das cartas ou da "cabra-cega", transportam-nos até aos salões de outra época e aos jogos de entretenimento e de galanteria.
As imagens destes quadros deliciosos de ingenuidade e vida cortesã ficam imortalizadas neste suporte material, como se nos detivéssemos perante as páginas de um livro, transportando através do evoluir dos tempos um realismo de representação somente possível graças às características únicas do azulejo, em termos pictóricos e lumínicos.
Este suporte material, executado com mestria de arte e técnica, permite o registo e a transmissão de um património imaterial intangível - a memória dos gestos, dos hábitos sociais de um tempo. O percurso da nossa história é assim mais fácil de conhecer a partir desta leitura de cenas animadas.

Espero que estes percursos de visita ao Solar dos Zagallos tenham possibilitado a todos o conhecimento de um património municipal exemplar a vários níveis - histórico, artístico e cultural. Outros passeios, nomeadamente como o de 30 de Junho, também são desejáveis, sempre com o objectivo da contínua descoberta e consolidação e reforço de aprendizagem.

Conceição Toscano

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