segunda-feira, 23 de julho de 2012

A preservação da memória do trabalho fabril na Cova da Piedade

Definição de património industrial: "Paisagem, sítio, edifício / bens móveis - instalações, máquinas, utensílios que testemunhem a actividade das sociedades economicamente desenvolvidas ou em vias de desenvolvimento, compreendendo as fontes de energia e as matérias-primas, os lugares de trabalho, os meios de transporte e utensílios técnicos, o conjunto dos produtos que resultaram da actividade industrial, o conjunto dos documentos escritos, gráficos, fotográficos, os textos administrativos, jurídicos, técnicos e outros." (Fonte: Kits Património: Património industrial, definição elaborada pelo TICCIH (The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage - Comité Internacional para a Conservação do Património Industrial), em 1978; consultar também a Carta de Nizhny sobre o património industrial, de 2003).

O interesse de um património arquitectónico não reside somente na sua estrutura construída, mas também no conhecimento da razão da sua existência. No caso específico do património industrial, as técnicas e as memórias do trabalho são essenciais para a percepção dessa vertente da vida dos homens.
Embora muitas vezes acautelada a protecção dos edifícios, por via da classificação, e da sua envolvente próxima (no caso deste tipo de património, uma integrante fundamental da sua dinâmica formal e funcional), há que lamentar, na maioria dos casos, perdas irreparáveis do seu recheio técnico e de toda a sua documentação empresarial (Ver texto «Arquivos empresariais: património documental e fonte histórica»).

Tomando como exemplo a fábrica de moagem do Caramujo, estando este imóvel já em vias de classificação em 1993, data do seu encerramento, é inaceitável que nada tivesse sido feito no sentido da salvaguarda de tão valioso espólio, representando este arquivo um testemunho importante da história, da memória e da cultura de uma empresa situada num lugar destacado na história económica e social do nosso país. Não representando este tipo de património um marco valioso no panorama cultural nacional não é de estranhar o completo desinteresse por esse valioso acervo documental e técnico, testemunho cultural, histórico ou científico.
Quanto à sua documentação somente restarão os documentos remetidos a organismos oficiais durante a sua existência como entidade industrial, ou pontualmente detidos por particulares que deles se apossaram, tendo percebido o seu conteúdo de mais-valia; quanto a outros testemunhos materiais de relativa pequena dimensão felizmente alguns também ainda existem em colecções particulares e sendo objecto de valorização por parte dos seus donos.
Peças desenhadas, corte transversal (trabalho efectuado pela firma Bühler para a reestruturação da maquinaria da fábrica de moagem do Caramujo, 1962) (fotocópia a preto e branco a partir do original a cores, propriedade de particular)

(Disponibilizada por Francisco Melo Parente, através do Facebook, no grupo «Almada Património Material e Imaterial»)
(Disponibilizada por Carlos Caria, através do Facebook, no grupo «Almada Património Material e Imaterial»)

O património móvel de maiores dimensões, a sua maquinaria, sofreu igual destino - após venda, só conheço oito máquinas que ainda funcionam numa empresa do sector moageiro no concelho de Sesimbra, restando unicamente as memórias fotográficas em alguns periódicos da época e a possibilidade de visualização num outro local.
Anúncio da firma Bühler (Fonte: Boletim FNIM, Ano VIII, Nº30, Abril de 1965 (moinhos de cilindros)
Dois dos moinhos de cilindros existentes até 1993 na fábrica de moagem do Caramujo, Agosto 2010
Num empenho de salvar as memórias de vidas inteiras dedicadas a um trabalho intenso e como tentativa de percepção mais completa da vida laboral desta zona do concelho almadense e recolha e salvaguarda das memórias dos intervenientes, lembrei-me de que a melhor solução seria recorrer a entrevistas aos trabalhadores da fábrica de moagem, um recurso fornecedor de uma pluralidade de dados informativos quanto à descrição dos seus espaços de trabalho, às suas funções específicas dentro da trama hierárquica fabril da moagem, respeitando sempre a sua identidade com os tempos passados.

"O técnico de moagem por vezes também denominado «moleiro» estava no topo da hierarquia e era o responsável máximo pela produção e cujo desempenho ditava o lucro da moagem. [...] A substituição gradual da máquina a vapor por alguns grandes motores eléctricos decorreu durante os anos 50.[...]Em 1963 fez-se a última grande remodelação da moagem com material 'moderno' e foi desmantelada a máquina a vapor (que se encontrava desactivada), por necessidade de espaço. Foi pena, porque actualmente seria muito interessante apreciar o volante enorme, as bielas manivelas em aço brilhante, os tirantes das válvulas, os corpos dos cilindros pintados a vermelho escuro, os bronzes luzidios mancais, etc. [...] Recordo-me ainda das dificuldades que representava por vezes conjugar o funcionamento da máquina com a maquinaria de produção da moagem. [...] Não é difícil de imaginar o conjunto de manobras e a perícia dos operadores para cortarem o acesso do vapor que estava a ser produzido no máximo da potência das caldeiras, pois se não cortassem de imediato o combustível e abrissem as válvulas de escape a pressão de vapor provocaria certamente uma explosão. E depois para repor a máquina em movimento e alcançar a velocidade normal, era preciso restabelecer a pressão do vapor, controlar adequadamente o fluxo de combustível e a quantidade de água. E a moagem não podia funcionar abaixo da sua velocidade nominal pois entre outros inconvenientes a qualidade da farinha sairia prejudicada. [...] Os trabalhos de manutenção da máquina também eram morosos e por isso eram adiados para as paragens aos domingos [...] e era preciso manipular e reparar peças ainda quentes. Havia trabalhos terríveis [...] Por estas razões havia um desejo generalizado de passar à energia eléctrica..." 
(Plenos de pormenores estes excertos das "memórias" de Álvaro Guimarães, o último director fabril, que ao longo dos anos desempenhou várias funções na fábrica de moagem, nomeadamente técnico de moagem).

Os poucos registos que sobreviveram à voracidade da falência e recessão industrial da Cova da Piedade, revestem-se de uma enorme importância para a reprodução deste sistema sócio-técnico. Embora revisitado a partir de citações testemunhais, de fotografias de outros tempos, alguns documentos pessoais, restos de exemplares da produção de outras eras e de recolha documental fotocopiada a partir de originais guardados em arquivos institucionais, o quotidiano laboral poderá ser relativamente recuperado. 

A finalidade desta recuperação seria evidentemente, na minha óptica, a construção de um discurso narrativo, provavelmente de carácter expositivo, um recurso de transmissão da memória histórica e social do Caramujo, e da industrialização da Cova da Piedade, através do complemento articulado de um património de domínio material e imaterial. 

Conceição Toscano

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