domingo, 7 de outubro de 2012

Visita ao património ferroviário do Barreiro

Em Agosto resolvi sair do meu concelho de Almada e conhecer um património industrial igualmente tão fascinante como se tornou para mim o estudo dos testemunhos materiais ligados à indústria da moagem (a minha escolha para realização da dissertação de mestrado). A partir de conhecimentos que tiveram lugar nas redes sociais, encetei uma abordagem à industrialização do Barreiro e a uma vertente extremamente importante da sua memória histórica: o estabelecimento do caminho de ferro na vila do Barreiro.

A partir de 1861, o Barreiro iniciaria um percurso de evoluções rápidas e de completa transfiguração, tornando-se um nó estratégico nas comunicações, nomeadamente entre o Norte e Sul do país.
O visitante de hoje depara-se com muitos vestígios que lhe possibilitam o conhecimento de um património possuidor de uma enorme carga simbólica e de memória identitária, quer para a cidade do Barreiro, mas também para a história nacional.

Ao visitar o passado e o presente deste património ferroviário, fiquei convicta da sua importância e daí a minha voz se ter juntado às daqueles que defendem a sua urgente preservação.

Em 1861 era inaugurada a primitiva estação do caminho de ferro. O imponente edifício ainda hoje mantém as características originais, com a fachada principal aqui apresentada.

Primitiva estação ferroviária do Barreiro, actuais oficinas da EMEF, Agosto de 2012
O caminho de ferro, com todas as actividades laborais relacionadas, constitui uma poderosa atracção e cada vez mais gente chega ao Barreiro. E começam a ser erguidas as primeiras construções para trabalhadores não naturais da vila. 
O Bairro Ferroviário surge na década de 30 do século passado, com implantação no Largo do Palácio do Coimbra. Reflectia na sua estrutura construtiva as diferenciações existentes no estatuto sócio-profissional dos trabalhadores.
Bairro ferroviário, Largo do Coimbra, Barreiro, Agosto de 2012
Outra das estruturas que conheci durante esta visita foi o edifício que alberga o terminal de mercadorias, com o típico telheiro, exemplo das construções da arquitectura industrial ferroviária.

Terminal de mercadorias, três perspectivas diferentes
Na parte final deste passeio de abordagem ao património ferroviário do Barreiro "aportamos" à estação terminus ferro-fluvial. Inaugurada em 1884, possibilitava o transbordo mais cómodo aos passageiros, uma vez que ficava situada junto ao cais fluvial. Com projecto do engenheiro Miguel Pais, este imponente edifício é inaugurado em 4 de Outubro de 1884, desactivando como estação a anterior de 1861.
Fachada lateral da estação ferro-fluvial do Barreiro, Agosto 2012
Fachada poente e principal da estação ferro-fluvial do Barreiro, Agosto 2012
"Arte e técnica conjugam-se nos elementos arquitectónicos do edifício. A fachada poente virada ao rio, articula elementos decorativos de temática marítima e vegetalista, em estilo neo-manuelino, característico do período romântico" (Fonte: página da Câmara Municipal do Barreiro)

Estação coberta de desembarque, Agosto de 2012
"Na fachada sul, de carácter mecanicista e funcional, está localizado o hangar de embarque dos passageiros. É utilizado o ferro e o vidro, transparente e colorido, materiais construtivos inovadores na época." (Fonte: página da Câmara Municipal do Barreiro)

Encontra-se hoje já desactivada desde a inauguração do novo terminal. Mas ainda é ponto de passagem e usufruto para muitos dos passageiros. E continua merecedora de novas utilizações que a coloquem no lugar de merecido destaque no universo patrimonial arquitectónico do Barreiro e também a nível nacional, como ex-líbris da construção industrial portuguesa.

A minha visita ficou incompleta uma vez que não conheci as máquinas, o património móvel complemento fundamental deste universo patrimonial e causa das construções que surgiram de norte a sul do país.
Mas esta primeira abordagem certamente possibilitou o conhecimento de um património importante, imponente e valioso, merecedor de atenção, não somente por parte do associativismo, nas actividades e encontros desenvolvidos por cidadãos interessados, mas também do poder local (que certamente conhece  a sua mais valia, a avaliar pelos conteúdos da página da autarquia, que consultei) e certamente a nível nacional.
Outras visitas serão necessárias para conhecimentos mais aprofundados e de apoio à preservação, instalação de núcleos museológicos, reutilização e usufruto dos vestígios materiais de uma das mais importantes (r)evoluções industriais do nosso país.

Conceição Toscano





sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Almada e o nosso património arqueológico

Organizada pelo Centro de Arqueologia de Almada e apoiada pelo poder local, nomeadamente Junta de Freguesia de Almada, realizou-se no passado dia 22 deste mês, a visita ao património arqueológico de Almada.

O ponto de encontro dos participantes foi o edifício dos Paços do Concelho, pertencente outrora aos arrabaldes do núcleo medieval.
Nas palavras de Vanessa Dias, a nossa guia, o que podemos encontrar nos dias de hoje em maior número são as estruturas negativos, no solo, que se foram conservando; ao contrário das construções à superfície que foram sendo "vítimas de alterações" devido às sucessivas ocupações.

Foto do Museu do Sítio. A legenda explicativa assim nos situa: "Compartimento de habitação com porta para a rua. No interior, um silo completo com tampa. No chão, vasilhas de armazenagem (talha e bilha) e transformação (alguidar de amassar) do séc. XIV."
Um ponto de visita muito interessante, de dimensão algo reduzida, mas com evidente mais valia para o apaixonado pela história e património do concelho, nomeadamente quanto à ocupação muçulmana, da qual existem vestígios em Almada a partir do séc. IX, e também ao período medieval e moderno. 

O grupo avança pelas ruas estreitas de Almada Velha em direcção ao Castelo, fazendo uma paragem na Igreja de Santiago (pertencente à Ordem de Santiago, donatária de Almada desde 1186), construída fora das muralhas.

O jardim do Castelo possibilita-nos uma panorâmica dos arrabaldes medievais. Nota de referência para o miradouro e o coreto, embora desfasados do contexto da temática da visita. 

O Castelo de Almada apresenta-se hoje completamente descaracterizado devido ao restauro moderno. O seu interior não é visitável, servindo como instalação da guarnição da GNR. A conquista por parte de D. Afonso Henriques deveu-se à sua implantação em zona estratégica.

Situada num esporão possibilitador de controlo absoluto do território, o Almaraz, na posse da Câmara Municipal de Almada, foi o próximo ponto de visita.
Parte do povoado está destruída devido à sua exploração, durante a época medieval, como pedreira. À primeira vista e sem transpormos os portões nada é visível que ateste ao visitante a importância deste aglomerado, na Idade do Bronze e posteriormente na Idade do Ferro, mas os testemunhos materiais encontrados, e já estudados pelos arqueólogos, são reveladores dos contactos culturais existentes entre os fenícios e os povos autóctones, tendo constituído uma comunidade rica, com recolha de espólio valioso. Como pormenores apresentada pela nossa guia, foi-nos referido que a metalurgia era uma actividade muito presente nesta população, assim como a tecelagem. Este povoado constitui o primeiro indício de urbanização de Almada - o seu núcleo inicial.
Os arqueólogos encontraram alguns materiais  testemunhando a conquista romana. Estando este povoado situado numa implantação de altura não era atractivo para a fixação dos romanos que prefeririam Lisboa, uma zona plana, enquanto nesta margem sul do Tejo aqui se fixariam os sectores rural e industrial.

A paragem seguinte deste roteiro arqueológico de Almada seria para uma apreciação rápida de uma casa de contexto urbano, de arquitectura pombalina.

O percurso continuaria, detendo-nos defronte da fachada principal da Igreja da Misericórdia, onde pudemos ouvir que aqui ocorreram descobertas de sepulturas no interior, testemunhas de enterramento intencional.

O passeio terminaria na Rua da Judiaria com a oferta de uma visualização inesperada - um silo medieval situado debaixo do pavimento da rua e coberto com uma tampa de esgoto; uma descoberta efectuada no decurso de obras de saneamento e preservada através da única forma possível dada a sua localização.

A arqueologia em contexto urbano foi a protagonista desta visita. Assinalo a complementaridade do trabalho desenvolvido entre a Junta de Freguesia  de Almada e a instituição organizadora, o CAA. O poder municipal desempenha um papel de salvaguarda do património arqueológico em meio urbano que, convém assinalar, se constitui e potencia devido a acções particulares e associativas. 



Conceição Toscano




terça-feira, 18 de setembro de 2012

Roteiro arqueológico em Almada Velha

Organizada pelo Centro de Arqueologia de Almada, realiza-se, no dia 22 de Setembro, a visita ao património arqueológico de Almada Velha.

O ponto de encontro é nos Paços do Concelho, às 10 horas.

Fonte: Página do Centro de Arqueologia de Almada no Facebook

Conceição Toscano

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Leituras do património

Depois de um interregno não planeado, aqui ficam algumas das leituras realizadas durante as férias.

Pedra & Cal Nº3, Julho/Agosto/Setembro 1999
"A valorização do património cultural, e em particular, do património arquitectónico, tendo em vista a sua utilização para fins turísticos, é uma das formas mais eficazes de estimular a sua salvaguarda e de criar as receitas necessárias para o respectivo financiamento." (V. Cóias e Silva, no Editorial «Património e turismo: um casamento de conveniência»)

«Mecenato cultural em Portugal», por Anabela Antunes Carvalho e Isabel Rodrigues Cordeiro
«Cultura e turismo: para uma economia de mercado», por Válery Patin






Pedra & Cal Nº16, Outubro/Novembro/Dezembro 2002
"As repercussões da nova rede de transportes foram imensas. A ligação entre as cidades e a província contribuíu, decisivamente, para o acesso à "civilização" de um interior ostracizado, e a economia ganhou um renovado impulso. [...] E o comboio foi rapidamente integrado pela nossa cultura e acarinhada pela nossa gente. Para além do entusiasmo dos "fans", os caminhos-de-ferro constituem, hoje, um valioso património construído que o país não pode ignorar e, muito menos, desperdiçar." (V. Cóias e Silva, no Editorial «Os caminhos-de ferro como património cultural»)

«As estações ferroviárias - evolução e história», por Simões do Rosário
«As infraestruturas ferroviárias em Portugal: o século XIX», por Jorge Paulino Pereira
«O Museu da Carris», por Leonor Silva

Pedra & Cal Nº48, Outubro/Novembro/Dezembro 2010
"O património cultural passou, assim, a englobar não só as construções, as esculturas, pinturas e outros objectos físicos - o património cultural material - que recebemos das gerações passadas e de que tanto nos orgulhamos, mas também o património cultural imaterial: tradições orais, saberes ancestrais, músicas, cantares e danças tradicionais, ou seja, todo um conjunto de referências identitárias tão importantes para certas comunidades humanas como os monumentos e edifícios históricos são para outras." (V. Cóias e Silva, no Editorial «12 anos de Pedro & Cal: Tempo para "desmaterializar"»)

«A Convenção do Património Cultural Imaterial: Contexto e aplicação na reabilitação do edificado», por Clara Bertrand Cabral
«Património imaterial: Onde mora a alma de um povo», por Alexandre Parafita
«Rugologia: O arquivo da rua», por Constança Saraiva
«Novas tecnologias ao serviço do património: A fotografia panorâmica 360º e realidade virtual», por António Cabral

Pedra & Cal Nº50, Julho/Agosto/Setembro 2011
"Estamos na era das novas tecnologias e da globalização e surge também uma nova ideia, do trabalho em rede, que deverá contribuir para que associações e empresas unam esforços e criem parcerias que, agindo de forma integrada, formem uma rede alargada de conhecimento da realidade existente ao nível do património edificado e grupos de intervenção, de modo a transformar o património abandonado nas áreas envolventes dos centros urbanos, que, reconhecidamente, mereça ser tornado útil e belo, para que as novas gerações encontrem nas nossas cidades espaços interessantes, onde possam (con)viver." (Carlos Freire, no Editorial «Associativismo, voluntariado e trabalho em rede»)

«Que futuro para um passado esquecido», por Bartolomeu de Noronha
«Património cultural e associativismo», por Francisco Sousa Lobo e Sofia Costa Macedo

Conceição Toscano

segunda-feira, 23 de julho de 2012

A preservação da memória do trabalho fabril na Cova da Piedade

Definição de património industrial: "Paisagem, sítio, edifício / bens móveis - instalações, máquinas, utensílios que testemunhem a actividade das sociedades economicamente desenvolvidas ou em vias de desenvolvimento, compreendendo as fontes de energia e as matérias-primas, os lugares de trabalho, os meios de transporte e utensílios técnicos, o conjunto dos produtos que resultaram da actividade industrial, o conjunto dos documentos escritos, gráficos, fotográficos, os textos administrativos, jurídicos, técnicos e outros." (Fonte: Kits Património: Património industrial, definição elaborada pelo TICCIH (The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage - Comité Internacional para a Conservação do Património Industrial), em 1978; consultar também a Carta de Nizhny sobre o património industrial, de 2003).

O interesse de um património arquitectónico não reside somente na sua estrutura construída, mas também no conhecimento da razão da sua existência. No caso específico do património industrial, as técnicas e as memórias do trabalho são essenciais para a percepção dessa vertente da vida dos homens.
Embora muitas vezes acautelada a protecção dos edifícios, por via da classificação, e da sua envolvente próxima (no caso deste tipo de património, uma integrante fundamental da sua dinâmica formal e funcional), há que lamentar, na maioria dos casos, perdas irreparáveis do seu recheio técnico e de toda a sua documentação empresarial (Ver texto «Arquivos empresariais: património documental e fonte histórica»).

Tomando como exemplo a fábrica de moagem do Caramujo, estando este imóvel já em vias de classificação em 1993, data do seu encerramento, é inaceitável que nada tivesse sido feito no sentido da salvaguarda de tão valioso espólio, representando este arquivo um testemunho importante da história, da memória e da cultura de uma empresa situada num lugar destacado na história económica e social do nosso país. Não representando este tipo de património um marco valioso no panorama cultural nacional não é de estranhar o completo desinteresse por esse valioso acervo documental e técnico, testemunho cultural, histórico ou científico.
Quanto à sua documentação somente restarão os documentos remetidos a organismos oficiais durante a sua existência como entidade industrial, ou pontualmente detidos por particulares que deles se apossaram, tendo percebido o seu conteúdo de mais-valia; quanto a outros testemunhos materiais de relativa pequena dimensão felizmente alguns também ainda existem em colecções particulares e sendo objecto de valorização por parte dos seus donos.
Peças desenhadas, corte transversal (trabalho efectuado pela firma Bühler para a reestruturação da maquinaria da fábrica de moagem do Caramujo, 1962) (fotocópia a preto e branco a partir do original a cores, propriedade de particular)

(Disponibilizada por Francisco Melo Parente, através do Facebook, no grupo «Almada Património Material e Imaterial»)
(Disponibilizada por Carlos Caria, através do Facebook, no grupo «Almada Património Material e Imaterial»)

O património móvel de maiores dimensões, a sua maquinaria, sofreu igual destino - após venda, só conheço oito máquinas que ainda funcionam numa empresa do sector moageiro no concelho de Sesimbra, restando unicamente as memórias fotográficas em alguns periódicos da época e a possibilidade de visualização num outro local.
Anúncio da firma Bühler (Fonte: Boletim FNIM, Ano VIII, Nº30, Abril de 1965 (moinhos de cilindros)
Dois dos moinhos de cilindros existentes até 1993 na fábrica de moagem do Caramujo, Agosto 2010
Num empenho de salvar as memórias de vidas inteiras dedicadas a um trabalho intenso e como tentativa de percepção mais completa da vida laboral desta zona do concelho almadense e recolha e salvaguarda das memórias dos intervenientes, lembrei-me de que a melhor solução seria recorrer a entrevistas aos trabalhadores da fábrica de moagem, um recurso fornecedor de uma pluralidade de dados informativos quanto à descrição dos seus espaços de trabalho, às suas funções específicas dentro da trama hierárquica fabril da moagem, respeitando sempre a sua identidade com os tempos passados.

"O técnico de moagem por vezes também denominado «moleiro» estava no topo da hierarquia e era o responsável máximo pela produção e cujo desempenho ditava o lucro da moagem. [...] A substituição gradual da máquina a vapor por alguns grandes motores eléctricos decorreu durante os anos 50.[...]Em 1963 fez-se a última grande remodelação da moagem com material 'moderno' e foi desmantelada a máquina a vapor (que se encontrava desactivada), por necessidade de espaço. Foi pena, porque actualmente seria muito interessante apreciar o volante enorme, as bielas manivelas em aço brilhante, os tirantes das válvulas, os corpos dos cilindros pintados a vermelho escuro, os bronzes luzidios mancais, etc. [...] Recordo-me ainda das dificuldades que representava por vezes conjugar o funcionamento da máquina com a maquinaria de produção da moagem. [...] Não é difícil de imaginar o conjunto de manobras e a perícia dos operadores para cortarem o acesso do vapor que estava a ser produzido no máximo da potência das caldeiras, pois se não cortassem de imediato o combustível e abrissem as válvulas de escape a pressão de vapor provocaria certamente uma explosão. E depois para repor a máquina em movimento e alcançar a velocidade normal, era preciso restabelecer a pressão do vapor, controlar adequadamente o fluxo de combustível e a quantidade de água. E a moagem não podia funcionar abaixo da sua velocidade nominal pois entre outros inconvenientes a qualidade da farinha sairia prejudicada. [...] Os trabalhos de manutenção da máquina também eram morosos e por isso eram adiados para as paragens aos domingos [...] e era preciso manipular e reparar peças ainda quentes. Havia trabalhos terríveis [...] Por estas razões havia um desejo generalizado de passar à energia eléctrica..." 
(Plenos de pormenores estes excertos das "memórias" de Álvaro Guimarães, o último director fabril, que ao longo dos anos desempenhou várias funções na fábrica de moagem, nomeadamente técnico de moagem).

Os poucos registos que sobreviveram à voracidade da falência e recessão industrial da Cova da Piedade, revestem-se de uma enorme importância para a reprodução deste sistema sócio-técnico. Embora revisitado a partir de citações testemunhais, de fotografias de outros tempos, alguns documentos pessoais, restos de exemplares da produção de outras eras e de recolha documental fotocopiada a partir de originais guardados em arquivos institucionais, o quotidiano laboral poderá ser relativamente recuperado. 

A finalidade desta recuperação seria evidentemente, na minha óptica, a construção de um discurso narrativo, provavelmente de carácter expositivo, um recurso de transmissão da memória histórica e social do Caramujo, e da industrialização da Cova da Piedade, através do complemento articulado de um património de domínio material e imaterial. 

Conceição Toscano

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Revitalização dos núcleos históricos - Cacilhas

Cacilhas, Largo Costa Pinto, 1905; hoje em dia: Largo Alfredo Dinis - Alex (postal divulgado, através do Facebook, por João Paulo Ribeiro no grupo «Almada Património Material e Imaterial»)
Implementada como parte de uma estratégia mais abrangente, uma operação de reabilitação urbana realizada em Cacilhas, uma das freguesias do concelho de Almada, a pedonalização da Rua Cândido dos Reis assume uma dinâmica de revitalização de um segmento específico, a nível histórico, social e económico, deste aglomerado urbano antigo. Num conjunto integrado de intervenções, a Câmara Municipal de Almada actua em duas vertentes: no edificado, através do restauro do edifício que já tinha sido sede dos Bombeiros Voluntários de Cacilhas, reutilizando este imóvel como mais um dos equipamentos de utilização colectiva do concelho; no arruamento, pensando em afastar os veículos, numa tentativa de devolver à população o usufruto pleno desse espaço público.
Cacilhas, Rua Cândido dos Reis, sentido descendente a partir do Centro Municipal de Turismo, 8 de Julho de 2012
Após alguns meses de espera, e também de desespero pelos atrasos, eis que surge uma artéria completamente transfigurada, atraente na sua componente estética possibilitadora de outros cambiantes de gozo da vida ao ar livre. Qualquer que seja o ponto de vista adoptado por quem passa, o registo visual transmite um enquadramento adequado entre a intervenção efectuada e o contexto envolvente edificado. Essa integração das obras contemporâneas, com marcas da tradição nacional do trabalho da "calçada à portuguesa", e das estruturas arquitectónicas já existentes, realça o espaço histórico, que se pretende dinâmico e inovador, mas afirmando sempre os seus valores patrimoniais (tanto materiais, como simbólicos), possibilitando manter a traça de memória que Cacilhas transporta consigo e deve continuar a ser a sua marca identitária como aglomerado urbano.

Como outros centros antigos das nossas cidades, vilas e aldeias, Cacilhas tem problemas específicos e tem enfrentado ameaças concretas. Muito virada para a oferta de comércio, nomeadamente através de lojas situadas na Rua Cândido dos Reis, com o decorrer dos anos, assistiu-se a uma desqualificação do seu comércio local, além da degradação do seu edificado, que, pontualmente tem sido alvo de restauro ou conservação, para além da existência de espaços devolutos.
Cacilhas, Rua Cândido dos Reis, sentido ascendente a partir do Largo, podendo visualizar-se parte da fachada principal da Igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso, 13 de Julho de 2012
Cacilhas, topo da Rua Cândido dos Reis, Centro Municipal de Turismo, 8 de Julho de 2012
Os limites desta rua são marcados por dois edifícios de funcionalidade diferente: a jusante encontramos a Igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso, templo construído no final do século XVIII, enquadrado em harmonia com o edificado existente, com utilização actual de culto; a montante, destacável na bifurcação de duas artérias, a Rua Comandante António Feio e a Rua Elias Garcia, o Centro Municipal de Turismo sobressai, devido às suas fachadas pintadas em tom vermelho, mas igualmente se enquadra no entorno edificado.
Cacilhas e o seu Largo - réplica do chafariz, 13 de Julho de 2012
No dia 13 de Julho, estando já a artéria transitável e acolhendo pareceres favoráveis dos seus utentes, é apresentada a todos a réplica do chafariz, que existiu em Cacilhas desde 1874 até à sua demolição nos anos 40 ou 50 do século XX. Fontanário importante para a vida pública dos habitantes da urbe e ainda hoje existente na sua simbologia e memória colectiva, tornava-se importante a reposição deste monumento, embora não existindo mais o original, mas sendo valorizável para a comunidade a vontade de erguer uma réplica, instalação agora concretizada.

Este projecto de intervenção nos núcleos históricos tem necessariamente de ser alargado a outras áreas de Almada, igualmente carenciadas e em espera da resolução dos seus problemas que já se tornaram endémicos, nomeadamente o Caramujo, na Cova da Piedade.
Em tempo de crise, há que continuar este trabalho de criação de ideias válidas, não somente da parte do poder local, mas igualmente por iniciativa particular (de que são exemplo algumas alterações efectuadas em espaços comerciais nesta rua) e avançar com práticas que efectivamente possam constituir ponto de viragem de situações de degradação e até de falência económica, afastando esse espectro de depressão; a reabilitação e a revalorização dos tecidos urbanos em articulação com a realidade social das áreas de intervenção, pode ser uma aposta ganha para uma futura sustentabilidade económica e uma revitalização do nosso concelho.

Conceição Toscano (texto)
Ermelinda Toscano (fotografias de Julho de 2012)

quinta-feira, 12 de julho de 2012

A nova entidade tutelar do património cultural

É com ansiedade atenta que muitas organizações e também a nível pessoal aguardam a completa implementação da transformação no panorama do património cultural português.

A nova Direção Geral do Património Cultural (DGPC) (fruto da fusão do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico e do Instituto dos Museus e da Conservação) e as Direções Regionais de Cultura têm nova orgânica.
Nesta altura, quando ainda o processo não está completo, algumas vozes alertam para os inconvenientes existentes, a falta de diálogo com outros intervenientes na área do património, nomeadamente o Conselho Nacional de Cultura e as Comissões Nacionais Portuguesas do ICOM (Conselho Internacional dos Museus) e ICOMOS (Conselho internacional dos Monumentos e Sítios) e "a profunda centralização,e,mais do que isso, a iniludível governamentalização que ora se pretende instituir". (ler aqui o comunicado das CNPs do ICOM e ICOMOS a propósito da nova orgânica do Património Cultural, no sítio online do GECoRPA - Grémio do Património).

A este propósito, igualmente reflectindo atenção a toda esta dinâmica de completa transformação do órgão que tutelará os destinos do nosso património cultural, resolvi trazer a este blogue excertos de uma entrevista concedida ao JL: Jornal de Letras, Artes e Ideias por Elísio Summavielle, director-geral desta nova entidade.

Como ponto de início da conversa ES defende que "será possível unir todos os interesses do setor para melhor os defender. Esta nova direção [...] assume-se como o ponto de partida para uma nova visão do Património, centrada nas ideias de trabalho em rede, parcerias e reabilitação urbana." Inquirido acerca do modo como vai actuar durante esta situação de crise, com contenção de despesas, ES responde que "a preocupação centrar-se-á na prevenção e con[serv]ação preventivas, um sistema nacional que ainda não existe. Na área do Património edificado fazemos de dois em dois anos uma monitorização para verificar os estados de conservação. Em casos de risco maior, mesmo não havendo dinheiro, podemos pelo menos evitar derrocadas, acidentes, fazer o mínimo dos mínimos. Sei que é um trabalho invisível - mesmo a sua recuperação - mas absolutamente necessário. Mas não se pode recuperar só por recuperar. Acima de tudo, é preciso criar programas para os espaços que uma vez devolutos são recuperados. Temos de os tornar visitáveis, mas também ocupá-los com novas funções.[...] é preciso criar novos hábitos, novos projetos de utilização, sempre associados a uma noção de conservação preventiva. Se cuidarmos do Património continuadamente, o investimento para a sua manutenção será menor."

Quanto à revitalização de espaços construídos que estejam devolutos estou plenamente de acordo, assim como à orientação para novas funções, até de forma a criar sustentabilidade económica.

Em relação a esta aposta numa conservação preventiva, ES avisa que ainda nada está previsto, mas que "gostava que esta fosse uma filosofia de atuação que envolvesse outros setores do Estado, em particular os do Ordenamento do território, Obras Públicas ou Educação. Temos de formar uma geração para o Património."

Quanto a esta problemática, estou ciente de que realmente muito há ainda para fazer na educação patrimonial, mas seguramente um ponto de partida serão os currículos formais dos vários ciclos de estudo do ensino e também um trabalho de parceria com as associações locais de defesa do património e de história local e também envolvendo os poderes políticos a nível local e central. 
Esta opinião também tem o aval de ES, que considera que nos devemos juntar todos, tendo em conta que "os nossos recursos nunca foram abundantes."

Inquirido acerca da filosofia desta fusão em curso: "Vamos fechar um ciclo que se iniciou nos anos 90 com uma série de Institutos com uma vocação mais disciplinar: de Arqueologia, Arquitectura, Património, Ecologia, Museus. Sempre defendi que o Património cultural requer uma estratégia unívoca e uma gestão integrada. Todas as disciplinas devem ter a sua autonomia, mas também devem ser entendidas num quadro geral de salvaguarda e valorização." Como resposta à questão "a dispersão foi inimiga de uma estratégia comum?", Elísio Summavielle responde que pensa que sim, até porque nunca houve uma verdadeira gestão integrada, tendo-se apercebido, ao longo dos anos de trabalho nesta área, da falta de diálogo entre os diversos organismos. ES afirma que foi "o primeiro Secretário de Estado que veio da área do Património e que tentou defendê-lo publicamente de uma forma unívoca." Estão a recolher alguns frutos dessa estratégia. "Não havia propriamente um diálogo entre turismo e Património. Esse afastamento tende a diluir-se. Quanto maior é a globalização maior é a vontade de contactar com outras identidades. Neste cenário, o Património pode desempenhar um papel importantíssimo. E quando digo que este é o nosso recurso mais importante, também o digo pelo seu valor económico. Por ter as fronteiras mais antigas do mundo e por não ter sido dizimado por duas guerras mundiais, Portugal tem um potencial enorme. Somos um país pequeno mas com uma enorme diversidade cultural."

Na minha opinião, penso que já vai sendo tempo de realmente pensar o património de uma forma multidisciplinar, mas igualmente educar as mentalidades para a educação da salvaguarda do património, não esquecendo que todos os registos patrimoniais têm valor para um povo e não somente os que ainda vão pertencendo a escolhas privilegiadas de actuação, deixando de parte outros, talvez menos considerados.

Acrescento que uma das mais valias do nosso património local (e não só) reside no facto histórico de termos tido uma industrialização com evolução lenta e tardia, configurando uma herança material única, nomeadamente ainda persistindo em Portugal muitos exemplares representativos de um universo fabril  (já desaparecido noutros países e por isso motivo de atenção); estão devolutos e a postos para uma intervenção de reabilitação que possibilite uma revitalização dessas estruturas e consequentemente das zonas envolventes, num verdadeiro trabalho de gestão integrada na área do património. 
Um dos exemplos (já apresentado noutros textos) é o edifício da fábrica de moagem do Caramujo, na Cova da Piedade, no concelho de Almada.
Fábrica de moagem do Caramujo - a espera da intervenção da restauração e reutilização
Caramujo - edifícios existentes na envolvente da fábrica, apresentando igualmente sinais de grave degradação

Fonte dos excertos da entrevista: JL: Jornal de Letras, Artes e Ideias Nº1087, de 30 de Maio a 12 de Junho de 2012

Conceição Toscano

domingo, 8 de julho de 2012

Solar dos Zagallos - A arte e a técnica dos jardins

Como complemento de habitabilidade, os jardins situam-se ao lado e nas traseiras da casa, estendendo-se num declive suave, com alguns degraus e sucessivos terraços.
Nota comum a tantos outros jardins, acolhendo características específicas da área rural e da região sul, aqui existe uma construção à medida das necessidades desta sociedade fechada e tradicionalista, com a criação de variados espaços: de cheiros e prazeres no jardim do aparato, o pomar, a estufa, a horta, o pinhal, alamedas de passeios ladeadas por bancos (também situados em lugares de realce, de eixo de caminhos, e na entrada do jardim, lateral ao portão principal do Solar), os tanques, os espaços íntimos (pátios), para além de algumas estruturas arquitectónicas como a Casa de Fresco, ou da Água, e as duas capelas, a do Senhor dos Passos e a de Santo António do Caiado (Ver texto de 1 de Julho).
O Jardim do Aparato do Solar dos Zagallos, situado nas traseiras do edifício
Casa de Fresco ou da Água
Com fins lúdicos e ornamentais assistimos à mesma diversidade azulejar nos jardins, já presenciada na habitação. Enquanto componente essencial da arquitectura portuguesa, o azulejo extravasa do espaço habitado interiormente para o ambiente exterior, em revestimento de patamares de escadarias, e alonga-se, penetrando nos jardins, onde cobre bancos e muros, refresca de azulejo padronizado a Casa da Água, veste de belos painéis as paredes das capelas.
A complementaridade entre as artes decorativas e a natureza cria recantos de lazer e de sociabilidade, representativos da forma de ser e estar dos habitantes da casa, ao longo de três séculos de uso.
A faceta de decoração artística do azulejo ultrapassa, no entanto, o mero ornamento e a funcionalidade para se transfigurar em componente importante no desvendar do corpus social da vivência do espaço.
Um percurso através do espaço ajardinado, situado ao lado e nas traseiras do espaço edificado, transporta o visitante para um mundo complementar de recantos, os pátios.
No mais harmonioso, o Pátio da Estufa, encontramos dois bancos de estrutura arquitectónica singela, mas harmoniosa, apresentando cada um revestimento azulejar em azul sobre branco, no centro do espaldar, emoldurado pelo enquadramento das pilastras e cimalha de rígido formalismo. Envolvendo os episódios historiados, o painel apresenta guarnição de ondas e concheados de azul denso, abrindo as pinceladas em tons esbatidos nos marmoreados.
Um dos quadros visualiza o "jogo da cabra-cega", o outro o "jogo das cartas". Através das pinceladas que se vão esbatendo e de jogos de linhas concorrentes, percebe-se um perspectiva tridimensional, que transfigura a inicial frieza estática em imagens de realismo dinâmico e cenográfico.
Pátio da Estufa - "jogo da cabra-cega"
Pátio da Estufa - "jogo das cartas (este painel tem sofrido sucessivos vandalismos e investidas de roubo; aos ataques sucedem-se os "arranjos estéticos" possíveis
No Pátio do Chá encontramos painéis de diversas épocas, desde o século XVIII até ao passado século, anos quarenta, de que é exemplo a foto seguinte, um painel modernista, com azulejos de figura avulsa de estampilhagem, pintados de forma algo ingénua, apresentando, entre outros motivos estilizados (sol, lua, flores), figuras tradicionais portuguesas e animais dos nossos "Impérios" das quatro partidas do mundo, denotando a influência das correntes ideárias do Estado Novo.
Pátio do Chá
Os restantes painéis são composições de azulejos polícromos de figura avulsa,  imaginativos e esteticamente muito apelativos, com flores ou com pássaros e flores, apresentando ornatos acessórios aos cantos, entremeados por azulejos de faixa, podendo ser datados do século XVIII.
Pátio do Chá
Pátio do Chá
A padronagem de motivos abstractos, em padrão repetido, está presente no muro do jardim e no revestimento da Casa de Fresco e como friso do nicho da parede (ver a segunda foto deste texto). Penso que posso igualmente apontar o século XVIII para a sua produção.
Muro do jardim, junto à Casa de Fresco
O padrão que reveste o banco central de um dos caminhos do jardim situado na zona lateral do Solar é de uma época posterior a estes referidos ultimamente. Os tons são esbatidos e os padrões parecem ser de cariz muito simplificado, marcado por motivo central florido e limites adornados em forma de cercadura. Não obstante essa singeleza e despojamento, o conjunto da aplicação, no centro do espaldar do banco e igualmente na sua base, resulta numa estética adequada ao eixo do jardim onde está situado.
Banco situado no jardim lateral do Solar, numa encruzilhada de caminhos
Pormenor do painel de revestimento do referido banco
O azulejo serve de diálogo entre o passado e o presente e aqui reside o seu poder, que não deve ser encarado como mero elemento decorativo, despojado da capacidade de transmissão de informação.
Reconstituindo a cultura da sociedade que o encomendou, transportou até aos nossos dias imagens da vida social setecentista e de oitocentos, com ligações de actualização de gostos e de modas até ao século XX. As suas capacidades expositivas contêm um poder extraordinário de captar momentos e sentimentos ou simples visões do mundo de outras épocas.
Cena figurativa do painel de azulejos que valoriza um dos bancos do Pátio da Estufa - "jogo da cabra-cega"
Nos bancos apresentando cenas de vida social e cortês, os jogos tradicionais, como o das cartas ou da "cabra-cega", transportam-nos até aos salões de outra época e aos jogos de entretenimento e de galanteria.
As imagens destes quadros deliciosos de ingenuidade e vida cortesã ficam imortalizadas neste suporte material, como se nos detivéssemos perante as páginas de um livro, transportando através do evoluir dos tempos um realismo de representação somente possível graças às características únicas do azulejo, em termos pictóricos e lumínicos.
Este suporte material, executado com mestria de arte e técnica, permite o registo e a transmissão de um património imaterial intangível - a memória dos gestos, dos hábitos sociais de um tempo. O percurso da nossa história é assim mais fácil de conhecer a partir desta leitura de cenas animadas.

Espero que estes percursos de visita ao Solar dos Zagallos tenham possibilitado a todos o conhecimento de um património municipal exemplar a vários níveis - histórico, artístico e cultural. Outros passeios, nomeadamente como o de 30 de Junho, também são desejáveis, sempre com o objectivo da contínua descoberta e consolidação e reforço de aprendizagem.

Conceição Toscano

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Solar dos Zagallos - Complementaridade arquitectónica e artística

Em Portugal, o século XVIII é considerado um período de construções. De norte a sul do país, nobreza e burguesia constroem palácios, solares e quintas de recreio; à semelhança do espaço habitado, encontramos uma complementaridade nos jardins de cada uma dessas estruturas.
Nesta quinta, que marca o território da Sobreda com uma impressionante presença física, o seu conjunto edificado, misto de solar residencial e casa agrícola, apresenta características de arquitectura civil e religiosa. Ao longo de três séculos de uso, os seus ocupantes aqui deixaram as suas marcas pessoais, ao nível da evolução de actualizações da moda e dos usos referentes ao espaço habitado, casa e envolvente exterior, aí reflectindo modos de vivência, hábitos sociais e culturais.

O seu património azulejar, visto num percurso de três séculos de arte e técnica decorativa em Portugal, é rico e diversificado. Aqui encontramos os painéis figurativos em contexto profano, destacando-se os exemplares do "salão das mentiras" no piso nobre do solar e os do patamar da escadaria principal, além dos "bancos dos jogos tradicionais", no jardim; os revestimentos padronizados nos corredores da habitação; os painéis figurativos religiosos, nomeadamente na Capela de Santo António e no banco da entrada principal do jardim (Ver texto «Passeios patrimoniais na nossa terra - Sobreda»).

O Solar dos Zagallos apresenta no corpo principal uma escadaria de acesso exterior, central, com um patamar revestido frontalmente de belíssimos painéis, nos quais o artista, em pinceladas de azul, pintou cenas figurativas, emolduradas por motivos geometrizantes e de enquadramentos laterais de meninos-anjos suportando capitéis encimados de jarros com flores. O conjunto dos quatro painéis acentua o impacto visual da entrada do solar, em conjugação com a perspectiva elevada.
Patamar da escadaria principal exterior, painel à esquerda
Cena figurativa de um dos painéis de azulejos situados no patamar da escadaria principal, no centro à direita
Cena figurativa de um dos painéis de azulejos situados no patamar da escadaria principal, no centro à esquerda
Na habitação, a escolha do revestimento para as zonas de passagem recai sobre o azulejo de padrão. Devido à repetição de elementos seria menos dispendioso cobrir estas áreas com painéis não figurativos, sendo os historiados reservados para o salão e escadaria principal.
Corredor do piso superior do edifício principal, apresentando composição formal e requintada com medalhão central
No salão nobre, o "salão das mentiras", entramos num local de revestimento de todos os espaços disponíveis entre as molduras das portas e janelas de sacada e a lareira. Os painéis, pensados e calculados pelos artífices para cada intervalo parietal, apresentam cenas figurativas, enquadradas por belas cercaduras polícromas, de dourados e manganês principalmente, encimadas lateralmente por jarros de flores, enquanto frutos coroam centralmente todo o conjunto recortado e saliente na parede. Duas figuras de meninos-anjos, em pinceladas recatadas de azul, dispõem-se de cada lado da moldura, sendo rodeados pelos volteios dourados. Pinceladas de esbatimento em manganês encimam e formam base com as belas e envolventes asas de morcego.
"Salão das mentiras"
"Salão das mentiras"
As cenas figurativas, em azul sobre o branco cerâmico, são cenários campestres, sempre ligados a rios. Barcos ou veleiros e edifícios antigos, por vezes a vista alongando-se numa distância visual de azuis cada vez mais esfumados.

O seu corpo adossado, construído nos inícios do século XIX, é de estilo simples, pombalino, fazendo a ligação da casa principal à Capela de Santo António.
Entrada (piso térreo) do corpo adossado, com formalismo mais simples do que o do piso nobre
Ao invés de os diferentes estilos se oporem, estamos perante uma complementaridade, quer a nível arquitectónico, quer de decoração artística, de revestimento azulejar, de talha, de pintura e de estuque. Um entrosamento excepcionalmente alcançado numa evolução de três séculos, acompanhando as vivências sociais dos seus moradores, adequando-se parte edificada e decorada, numa simbiose e coordenação de funções e formalismos.

Mas o Solar dos Zagallos apresenta outra valência importante, para além do seu valor patrimonial: a de documento vivo de um passado, perpetuado através dos tempos. As fontes de conhecimento da nossa história são muito diversificadas e podem incluir os testemunhos gravados a pedra ou pintados na cerâmica.
O azulejo, como entidade patrimonial multifacetada, transmite-nos conhecimentos não somente estruturais da habitabilidade, decorrentes das suas características decorativas e funcionais, mas igualmente de suporte cénico de vivências sociais e históricas.
Seguindo modas e gostos consoante as épocas atravessadas, o azulejo ajuda-nos a estabelecer cronologias, não somente quanto à evolução da arquitectura e artes decorativas, mas também ao nível do estudo da história, através da análise dos testemunhos materiais de suporte à própria vivência quotidiana (exemplo também a perceber nos seus espaços exteriores).

Terminada esta visita aos espaços arquitectónicos de habitação, agendo para um próximo dia o passeio pelos jardins, igualmente reveladores de um lugar de memória, um espaço de criatividade, um local de encontro do contemporâneo com o antigo.

Conceição Toscano